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COLONIALISMO DIGITAL, IMPERIALISMO E A DOUTRINA NEOLIBERAL

Por Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC, pesquisador CNPq. Investiga as possibilidades de desenvolvimento e uso da IA além do mercado.

Vou colar aqui algumas citações fodas que tirei desse texto introdutório do Sérgio.

Este livro trata do colonialismo digital não como metáfora ou força de expressão, mas como a dinâmica do capitalismo tardio que constitui sua existência a partir de dois elementos intercambiáveis: uma nova repartição do mundo em espaços de exploração econômica e o colonialismo de dados.

Não há dúvida de que o colonialismo histórico, definido por Karl Marx como um dos métodos utilizados pelos capitalistas europeus para realizar a acumulação primitiva de capital, não existe mais.

O novo colonialismo é dataficado, e sua violência muitas vezes sutil produz a precarização nada suave do trabalho e aponta para uma submissão social enredada e gamificada que formata sujeitos submetidos à servidão maquínica e aos sistemas algorítmicos das grandes empresas do Norte global.

Notamos que a manutenção do livre fluxo de dados para os Estados Unidos é um elemento fundamental de extração de riqueza de países tecnoeconomicamente pobres e dependentes.

[...] é importante destacar o papel das consultorias internacionais para a adesão dos gestores públicos e privados a discursos que dão cobertura à expansão do colonialismo digital. As consultorias têm demonstrado grande capacidade de sedução com relatórios e levantamentos aparentemente impecáveis, bem como com seus power points motivacionais.

De modo significante, as consultorias são disseminadoras das estratégias das big techs, das métricas que portam as exigências de adequação e conformidade a produtos e práticas específicas do imperialismo.

Como bem demonstrou David Beer em Metric Power5, formas de medir são métodos de poder e de controle que moldam comportamentos e decisões são construções sociais, refletindo os valores e os interesses de quem as cria e as utiliza. As consultorias polinizam ideologicamente as classes dominantes e os gestores públicos dos países tecnoeconomicamente secundarizados.

A digitalização e a dataficação não eliminaram o racismo, mas o reproduziram e, em alguns casos, o expandiram pela gestão algorítmica. Bancos de dados que portam decisões racistas ao alimentar os sistemas algorítmicos de machine learning, como uma rede neural artificial, têm gerado padrões racializados e modelos racistas para tratar novos dados. Assim, a chamada inteligência artificial baseada em dados pode não apenas reproduzir, mas também ampliar, discriminações que buscamos superar.

O colonialismo dissemina que o único modo de criar tecnologias é esse que nos subordina e nos modula. Afinal, as plataformas digitais alegam buscar apenas e tão somente a melhora de nossa experiência. Para tal, extraem constantemente nossos dados a fim de realizar predições, a ponto de não precisarmos mais querer, uma vez que os algoritmos que aprendem com os dados de comportamento poderão predizer nossas vontades.

Essa enorme coleção de dados reflete em milhares de datacenters, muitos com mais de 50 mil metros quadrados e milhares de servidores, gerando impacto ambiental e contrariando quem dizia que a digitalização melhoraria o meio ambiente.

A localização dos data centers parece não esconder mais uma face do colonialismo digital: quase a metade deles está na América do Norte. São consumidores intensivos de energia e de água e geram um impacto ambiental nefasto.

Isso agora tá mudando, a partir de mais uma prática colonialista. Agora as big techs se apropriam da água e da terra dos países da América Latina pra instalar datacenters, usando lobby pra convencer e prometer desenvolvimento econômico, empregos etc., que no final não se concretizam depois da etapa de construção.

Levanto outra grande qualidade deste trabalho de Faustino e Lippold: as possibilidades da resistência. Os autores se inspiram na visão do psiquiatra e militante da resistência argelina Frantz Fanon para organizar o pensamento, a estratégia e a ação da luta contra o colonialismo de dados. Isso implica, teoricamente, a perspectiva ambivalente da tecnologia. O digital pode ser colocado a serviço da luta emancipatória? A IA pode ser reformatada e repensada para assegurar o interesse das classes populares, das comunidades tradicionais, ou está intrinsecamente vinculada à eficácia e à eficiência exigidas pelo capital? Protocolos anticapitalistas inspirados no ativismo hacker e nas ideias de Fanon poderão gerar o mesmo efeito do rádio na luta contra o colonialismo francês? É possível inaugurar uma IA anticapitalista? Ou nada disso importa, pois dados, algoritmos, modelos estatísticos seriam neutros?

O controle do intelecto geral pelo capital reforça a alienação técnica e anula a inteligência coletiva local consolidando sua submissão ao marketing. [...] O fetiche da tecnologia é uma dimensão da alienação técnica que robustece a alienação do trabalho.

A cultura se apartou da tecnologia, como se esta não fosse também sua expressão e ambas não fossem social e historicamente condicionadas. A tecnologia se tornou uma espécie de solução mágica, cada vez mais distante da compreensão das pessoas. Quanto mais a indústria avança no processo de divisão do trabalho, quanto mais vai substituindo o trabalho vivo pelo trabalho objetivado, mais distantes ficam os trabalhadores da apropriação do fruto de seu trabalho.

A alienação técnica e a alienação do trabalho atingiram seu ápice no mundo informacional das máquinas cibernéticas.

Com uma classe dominante que não apostou na industrialização em um mundo industrial e, agora, não aposta em criar e desenvolver a infraestrutura cibernética necessária para um mundo informacional. E o Estado? Nada pode fazer? Poderia, caso seus gestores não estivessem subordinados à doutrina neoliberal.

[...] o neoliberalismo reforça o colonialismo digital e nega às sociedades o direito à invenção e ao desenvolvimento tecnológico.